quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Foi engano

essa noite te liguei
foi engano
era outro o número
que eu queria discar

podia estar dormindo
bebendo ou transando
mas era só com você
que eu queria falar

sábado, 20 de agosto de 2011

Negou-lhe o direito de morrer antes de estar vivo nela

"Não podia chorar por ele, não tinha sentido chorar por alguém que mal se conhecia, alguém simpático e cortês, e talvez um pouco apaixonado, e em todo caso bastante homem para não suportar a humilhação daquela viagem, mas não era ninguém para ela, apenas umas horas de conversa, uma aproximação virtual, uma simples possibilidade de aproximação, uma mão firme e carinhosa sobre a sua, um beijo na testa de Jorge, uma grande confiança, uma xícara de café bem quente. A vida era essa operação lenta demais, silenciosa demais para mostrar-se em toda a sua profundidade, teria sido necessário acontecerem muitas coisas, ou não acontecerem, e que isso fosse o que acontecia, teriam tido de encontrar-se pouco a pouco, com fugas e recuos e mal-entendidos e reconciliações, em todos os planos que ela e Gabriel se assemelhavam e se necessitavam. Olhando-o com alguma coisa que incluía despeito e recriminação, pensou que ele havia precisado dela, e que era uma traição e uma covardia sair assim, abandonar-se a si mesmo na hora do encontro. Repreendeu-o, inclinando-se sobre ele sem temor e sem pena, negou-lhe o direito de morrer antes de estar vivo nela, de começar realmente a viver nela.
(...) Nem ele nem ela teriam jamais sabido que precisava do outro, assim como duas cifras não conhecem o número que compõem, de sua dupla incerteza teria crescido uma força capaz de transformar tudo, de encharcar-lhes a vida de mares de corridas, de aventuras inauditas, de descansos com mel, de bobagens e catástrofes, até um final mais merecido, até uma morte menos mesquinha. O abandoná-la antes do encontro era infinitamente mais torpe e mais sórdido do que o abandonar suas amantes do passado. (...) Tinham-no matado como a um cão, decidindo por ele, acabando com sua vida sem que sequer tivesse podido aceitar ou negar. E o fato de não ser culpado era, assim, perante ela, a pior, a mais insanável desculpa. Alheio, entregue a outras vontades, grotesco alvo para a pontaria de qualquer um, sua traição era como o inferno, uma ausência eternamente presente, uma carência enchendo o coração e os sentidos, um infinito vazio no qual ela cairia com todo o peso de sua vida. Agora, sim, podia chorar, mas não por ele, chorava por seu sacrifício inútil, por sua tranquila e cega bondade, que o haviam levado ao desastre, pelo que tratara de fazer e talvez tivesse feito para salvar Jorge, mas por trás desse pranto, quando o pranto cessasse como todos os prantos, veria elevar outra vez a negativa, a fuga, a imagem de um amigo de dois dias que não teria forças para ser seu morto a vida inteira. "Perdão por dizer-lhe tudo isso", pensou desesperada, "mas você estava começando a ser coisa minha, já entrava por minha porta com um passo que eu conhecia de longe. Agora serei eu quem foge, quem perde muito breve o pouco que possuía de seu rosto, e de sua voz e de sua confiança. Você me traiu de repente, eternamente; coitada de mim, que aperfeiçoarei diariamente minha traição, perdendo aos poucos, cada vez mais, até que não seja nem sequer uma fotografia, até que Jorge não se lembre de você, até que Léon outra vez entre em meu espírito como um turbilhão de folhas secas, e eu dance com seu fantasma e não me importe"."

(Trecho do livro "Os Prêmios" - Júlio Cortázar)

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Eu, você e todos nós

(me and you and everyone we know) - Miranda July (2005)



As pessoas são esquisitas, são mesmo. Gostei muito desse filme por se limitar a mostrar esse lado esquisito de absolutamente todos os personagens e a dificuldade que eles (como todas as pessoas) encontram para se relacionar uns com os outros. Acabei até ficando meio curiosa pra saber mais sobre a diretora, Miranda July, que atua como protagonista do filme e que me pareceu ser uma dessas pessoas que não consegue evitar transportar toda sua falta de traquejo da vida pessoal pro trabalho e, pelo que consegui ler sobre ela, no blog que ela própria mantém e em outros sites, só consegui pensar que ela deu mesmo sorte de conseguir trabalhar em uma área que valoriza exatamente o antissocial (o charme de não conseguir se relacionar é bem reconhecido em Cannes, parece). Me identifiquei com a maneira meio sem jeito com que ela se comporta e com suas ideias também, tudo isso se somando ao fato de ela não ser muito bonita; a sociedade não permite que pessoas bonitas sejam esquisitas (talvez por uma limitada oferta genética de talento ou simplesmente porque as pessoas não aceitam que alguém precise se esforçar para alcançar o sucesso enquanto pode se dedicar apenas a: ser bonito).
Enfim, pessoas esquisitas, situações esquisitas e diálogos esquisitos em cenas repletas de pessoas comuns, montadas no intuitos de moldarem uma situação comum e com diálogos interpretados com palavras comuns, é disso que o filme trata, acho que para mostrar um pouco como o "esquisito" consegue corromper todas as esferas, tanto as concretas quanto as metafísicas, as coisas comuns quase não existem. As coisas comuns, caso sejam vistas apenas como comuns, deixam de fazer sentido. A maioria das coisas só começa a fazer algum sentido quando se adiciona o elemento do "esquisito" (algumas pessoas podem deixar de entender a partir daí), e é aí também que surge a maior dificuldade das pessoas de entenderem umas as outras, nunca se sabe o que alguém vai considerar comum ou esquisito e nem o que essa pessoa toma como positivo e como negativo (eu estou tendendo a considerar mais o comum como negativo, só pra constar), as relações já começam estragadas, todo mundo é esquisito ao mesmo tempo que todo mundo se acha comum demais, acho que Miranda July conseguiu captar melhor do que ninguém esse conceito tão complicado, um dos melhores filmes que vi esse ano!

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

No inverno

se você não se importar
gostaria de colocar
sob seus pés,
durante a noite,
meu coração gelado
para você esquentar

pode usar meias, se quiser

e eu, então,
não vou relutar
em te entregar
minhas orelhas frias
quando faltar
massa de modelar